Depois de um tempo, comecei a contar os dias. E as noites.
E venho marcando nas folhas do calendário.
Até agora, foram 225 sunsets.
Duas estações inteirinhas e sete ciclos lunares completos.
Uma dezena de bolos abatumados. E outra de bolos fofinhos.
Milhares de minutos lavando louça, mãos e higienizando compras.
Um punhado de filmes e séries.
46 novos livros lidos. E duas mãos de releituras.
Uma mão cheia de cursos que valeram a pena fazer.
Uns cinco projetos e três rascunhos de livro descartados.
Horas e horas e mais horas de pesquisa, contemplação, meditação e diálogos com o Sagrado.
Váááários momentos de ansiedade.
E muitos, muuuitos mesmo, de coração apertado. De choro. De luto. De tristeza. De indignação. Muita indignação. E raiva. Por tanta injustiça, indiferença, egocentrismo e destruição que se dissemina e propaga com a mesma velocidade que as labaredas de fogo ao vento.
O que acabou me jogando num processo visceral de questionamentos. Que me levariam a uma desconstrução e (r)Evolução de consciência.
Abri olhos, ouvidos e a mente para outras narrativas sobre o mundo.
Comecei a falar menos, bem menos.
E a escutar mais, muito mais.
E me vi diante de verdades difíceis.
Uma delas, a de que a supremacia branca que formou a estrutura social que até hoje sustenta privilégios para alguns e injustiças pra muitos – sendo a maior delas, o racismo – me privilegia, sim. Afinal, nunca, jamais, tive qualquer pensamento ou aflição em função da cor da minha pele. Zero preocupação a ter um dedo ou uma arma apontada na minha direção, ou uma oportunidade de trabalho roubada, apenas pela cor da pele que eu visto.
Calei e mergulhei nessa jornada de entender a desconstrução do mundo de hoje.
Me pus a escutar, ler, prestar atenção a aprender com pessoas antenadas e sintonizadas com o nosso tempo e os desafios coletivos. Gente que questiona o status quo desse sistema, e que coloca o dedo na ferida, e que nos chama pra participar ativa e conscientemente desse processo de transformação.
Nomes como Ailton Krenak, Djamila Ribeiro, Eliane Brum, Elizabeth Gilbert, AD Junior, Joice Berth e André Carvalhal, esse um cara cujas ideias eu super me identifico, pois traduzem e refletem bem o que eu acredito. E ainda a escritora e feminista Chimamanda Adichie e a artista plástica Yolanda Dominguez, expert em gênero e comunicação, que me ensinou a questionar o quanto a narrativa por trás das poses e imagens da moda reforçam estereótipos machistas do patriarcado. Virei mega fã dela!
Também encarei o desconforto das verdades duras ditas pela Layla F Saad, que vão muito além do workbook Me and White Supremacy. E sigo escutando essa voz que provoca e instiga nos tornarmos melhores ancestrais. Seres mais conscientes humanos e com consciência dos preconceitos que reproduzimos ou endossamos com nossas atitudes (ou a flata delas), sem nem nos darmos conta.
Quem também me instigou a olhar pro racismo estrutural foi Jane Elliot, uma educadora papo-reto que há 52 anos usa sua voz e seu privilégio branco pra detonar o racismo. Ela quem criou o fantástico experimento Blue Eyes, Brown Eyes em 1968, um dia depois da morte da Martin Luther King. E o fez pra mostrar, com um exercício simples mas impactante e transformador, como o racismo é ensinado. Com o propósito de perpetuar um sistema opressor e injusto pra caramba.
Aos 93 anos, hoje Jane segue com seus comentários espirituosos. lúcidos e impagáveis e sua mensagem clara e direta de que o racismos é uma escolha que se faz pelo preconceito e pela ignorância. “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mudo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”, já diria Hanna Arendt.
Dessa imersão entendi como a narrativa opressora que colocou o homem branco no centro do mundo, como detentor de todo o poder e privilégio, originou um sistema brutalmente injusto social, econômica, ética e humanitariamente. Uma sociedade racista, machista, homofóbica, capacitista, patriarcal em sua estrutura. E um modelo econômico colonialista, capitalista e extrativista que está levando a vida na Terra ao colapso.
E haja desconstrução pra mudar isso!
Em mim. E no mundo.
O que me fez buscar outras vozes pra seguir destrinchando isso tudo e aprendendo. Vozes como a da maravilhosa advogada ativista Valarie Kaur, autora do potente See no Stranger – A Memoir and Manifesto of Revolutionary Love, (Não veja um estranho – Um memoir e manifesto do Amor Revolucionário, em tradução livre). Nesse seu livro que mescla memórias e ativismo, Valarie nos apresenta como e porque a ação compassiva inspirada no amor revolucionário é a nossa mais potente atitude nesses tempos de ódio, como já falei aqui. E pra ‘parir’ um novo mundo de fato.
Também passei a ingerir com freqüência as palavras do rabino Nilton Bonder e acompanhar a narrativa amorosa do pastor Henrique Vieira. E intensifiquei as doses de Jack Kornfield, Dalai Lama, Papa Francisco, Leonardo Boff e Caroline Myss , gente que fala sobre a ética do amor como antídoto para o apocalipse moral que vivemos, sem se perder no nonsense da positividade tóxica. E ainda do @embrulhaoficial, pra dar risada com o nosso novo cotidiano.
Outro conteúdo super sintonizado com a complexidade e os desafios desse nosso tempo que me ajudou muito e passei devorar mais recentemente é o do curso @climaperestroika. Super instrutivo e bem construído por uma mulherada antenada com esse nosso momento! Adoro!
Outra plataforma também rica em aprendizado e inspiração pra mim tem sido pra mim o Papo das Nove, as lives do jornalista e ambientalista André Trigueiro.
Baita professor e ser humano incrível, com um cosmovisão super coerente com a minha, suas lives diárias são verdadeiras aulas sobre ser & viver sintonizada com o nosso tempo e época. E dar conta da gente e do nosso entorno. Seus temas & assuntos passam por meio ambiente, consciência social, relações éticas, respeito à diversidade, nossa interdependência, espiritualidade sem nonsense, e como é possível fazer muita coisa diferente agora pra viver num mundo mais justo e melhor pra todos.
Eita que até aqui foi uma baita atualização no meu sistema operacional, aka consciência! Uma que me deixou sem chão e sem voz, e me fez aprender a fazer diferente as coisas por aqui. 😉
E não é exatamente isso o que o encontro de Plutão e Saturno em Capricórnio no céu simbólico de 2020 simbolizava? Tempos de transmutação? Um tempo de desconstrução de estruturas e narrativas que sustentam um sistema tão injusto, que privilegia o bem ser e estar de poucos e não o de todas as pessoas e todas as espécies!?
Aham. É disso que esse momento se trata.
Um tempo de entender que a mudança começa por nós, sim. Mas não se resume a mudanças individuais. E que é hora de atender o chamado da vida, dizer ‘presente’ com a voz e os recursos que temos, e participar dessa grande desconstrução e grande transformação coletiva. Onde cada um tem um papel a desempenhar, sim!
Pois assim cheguei ao dia 226 da pandemia.
Com o sistema operacional – a consciência – atualizado. Sentindo a voz ganhar força outra vez, pra me somar as centenas de outras vozes que me educaram nesses meses. Contando histórias de gente. Criando ficção. Ainda em transformação. E registrando na folhinha cada novo amanhecer sob o céu pandêmico.
Imagem: Eric Ward/Unsplash